Literatura é Rosa, O Resto é Gramática

"- Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser - se viu -; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram - era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente - depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá - fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessa lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniões... O sertão está em toda a parte."
O sertão está em toda a parte, mas não é em qualquer esquina que se encontra um Guimarães Rosa...
Nem é coisa de décadas.
Levamos meio milênio pra criar este...
Quanto durará para inventarmos outro?
Talvez uns mil anos ou mais.
A literatura que Guimarães Rosa inventou é única em português.
Eu diria que Monteiro Lobato apresentou o Jeca Tatu ao Brasil, mas foi Rosa quem deu vida a ele.
A história de Grandes Sertões: Veredas, a qual vocês degustaram o primeiro parágrafo, é uma das maiores monstruosidades que eu li da literatura luso-brasileira, e olha que ainda falta ler muita coisa!
A história não é lá essas coisas...
Quer dizer: a história é uma historinha...
Como milhares de outras.
Um ex-jagunço do sertão de Minas Gerais conta suas memórias a um jornalista...
O que há de novo nisso?
Aparentemente nada. Bibliotecas inteiras foram escritas sobre Guimarães Rosa. Não sou nenhum estudioso da literatura, portanto não vou abrir aqui mais um tratado sobre ele, mas me interessa a literatura em si, o maneirismo por trás de uma idéia, o que extrapola a necessidade e a obrigação de se escrever uma simples historinha.
Escrever uma história todo mundo consegue, não é coisa das mais difíceis, agora, escrever algo com um DNA atípico, que deixará uma marca, este patamar é para poucos.
Rosa simplesmente destrói a gramática e a sintaxe! Ele se utiliza de um artifício engenhoso, mas que, antes dele, poucos, ou nenhum, haviam utilizado com maestria em português: escrever da maneira como o sertanejo se expressa...
É o seu pulo do gato.
Mas desde o início percebe-se em sua obra esta tendência.
O que leva ao despertar do artista em relação a sua obra...?
Em outras palavras, como ele adquire confiança para escrever desta ou daquela maneira...?
Pergunte ao pintor como ele faz tal descoberta...
Ou ao músico, ou ao escultor...
Eis o mistério da arte...
Como Guimarães Rosa entendia a existência?
Mais importante do que responder a esta pergunta tão subjetiva, é saber que a obra literária, o bom livro, leva você a caminhos tão insuspeitados quanto as consequências de uma obra literária na história, coisa que transcende o tempo e o próprio criador da obra de arte...

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