O NOVO MILÊNIO É PURO DIVAGAR

I

Acordei assim que ouvi o barulho...
Um marulho estranho, oco, cavo, sinistro. Uma madrugada chuvosa, com muito vento, nem calor nem frio, um esvoaçar como que desesperado.
Na verdade foi um pouco antes...
Acho que fui no banheiro, por isso não dormi logo em seguida, tinha de achar o sono em algum lugar naquele silêncio todo, natividade à toa, mas não tenho muita certeza. Acho que sim. Mas talvez faça parte do sonho encalacrado, o camelo enfurnado numa agulha difícil de engolir, a polícia hostilitária, e o rio correndo pro mar...
Ainda assim houve aquele barulho, semelhante a uma locomotiva rouca, com pouca lenha pra queimar, um som abafado, sei lá!, meio eletrônico... Eletrônico?! Positrônico, vai... É... Era meio difícil de identificar mesmo, e quando fui até a janela, janelas trancadas, não havia nada!...
Verdadeiramente nada!
Na sua forma efêmera, estrambolesquisita, como uma nave espacial de brinquedo, arquetípica, enlouquecendo morcegos fugitivos.
Acredito que todo sono tem esta característica espectral, por mais prosaico que seja, e sempre uma fantasia frustrante, catelepilético!
Aquela atmosfera de sonho e chuva e vento, nada voando, nada acontecendo, nem uma perereca noctívaga, nem um grilo falante, só a chuva fina feia e falha, emoldurando os espotes de luzes brilhantes outside, o vento uivando como as feras de fauces escancaradas, além das almas, aquilo me transportava para um cenário lovecraftiano em potencial hermético, solidário mas longínquo, isto sim é literatura, não esses pasquins medíocres que as nossas editoras insistem em publicar, sem nenhuma criatividade, imitação de lagomorfos baratos!
Tentei dormir novamente...
Não foi possível.
O barulho voltou à minha janela, à minha mente, na minha paisagem noturna, temporal na janela, chuva grossa na rua, o vento falando em altos brados, e esta mesma janela que emoldurava meu sonho distante, sacudia com a força da imaginação da natureza alterada, porque ela, sim, não falava mais a língua dos homens, absolutamente inverossímel, sem compreender linguagens estrangeiras...
Tudo é possível?
Nem tudo.
Os sonhos, estes podem ventar e chover à vontade.
Nem pererecas aflitas, nem morcegos temerosos, ou grilos silenciosos, ou locomotivas abafadas...
Ou tudo na pena de um Mestre vale a pena...
Que Deus te conserve assim, ó noite povoada de personagens estranhos, tu és minha concubina de momento, efêmera como uma cigarra no verão; canta porque a natureza insiste para que tu cantes, embora o cigarro esteja quase apagando neste difícil negócio de sobreviver...

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