CANUDOS E ALMA NACIONAL BRASILEIRA

A Guerra de Canudos foi um capítulo trágico na história nacional, e a primeira nota dissonante, dentre tantas outras que viriam depois, da recém nascida República do Brasil.
No entanto, há muito mais que nos revela Euclides da Cunha na sua obra prima Os Sertões. Fica claro, por exemplo, que desde sempre o marco característico da psiquê nacional foi, e continua a ser, a bagunça e o improviso irresponsável da autoridade pública, uma lógica insana que nos leva a tripudiar o que há de mais óbvio e imediato em todos os campos da organização social.
Se Shakespeare tivesse nascido no Brasil, ele teria escrito sobre Canudos, certamente. A Tragédia dos Erros, nas linhas e nos fatos um drama shakespeariano.
Uma Ré-pública insipiente, recém-nascida e cheia de bravata, que condenava os erros do Império falecido, e naufragava nos próprios equívocos hodiernos; imaginando uma ordem que não havia e um progresso que até hoje não alcançou.
Mas voltemos à Canudos. Esta é uma crítica contemporânea, da já velhíssima República de hoje, por mais que certos ufanistas insistam, de tempos em tempos, transmudá-la com epítetos vistosos mas de pouca eficácia real. E, no entanto, Canudos continua atual, mesmo se colocada em contraponto com as mazelas atuais... É porque o conflito racial fica patente pelas palavras de Euclides... E quanto nós resolvemos desses problemas históricos...? Quase nada!
Entretanto, mesmo sob o olhar crítico de Euclides da Cunha, e em uma linguagem, eu diria, das melhores que já pude me debruçar, há contradições intrínsecas na obra...
Parte de sua análise sobre os erros das expedições militares à Canudos começa pelos aspectos raciais, como já adiantamos, e, se no começo, ela deixa transparecer o preconceito do Sul em relação aos desconhecidos "curibobocas" do Norte, no que cheira à nazismo, ao final do livro, mais do que convencido da bravura do sertanejo, que lutava pela sua terra invadida, e das injustiças impetradas contra ele, no que nos alinhamos também, Euclides presencia e coleciona, in loco, uma série de aberrações e violências de ambas as partes; relatos e acontecimentos escabrosos, e aí Shakespeare volta à cena, no que há de mais medieval em requintes de insanidade assassina. Euclides acaba cheio de admiração pelos derrotados.
Deixemos que ele fale com suas próprias palavras...
"A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial (...)"
"A mestiçagem extremada é um retrocesso (...)"
"(...) o mestiço - traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares - é, quase sempre, um desequilibrado. (...)"
"(...) o mestiço - mulato, mameluco ou cafuz - menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores. (...)"
"(...) A raça superior torna-se o objetivo remoto para onde tendem os mestiços deprimidos e estes, procurando-a, obedecem ao próprio instinto da conservação e da defesa. (...)"
Incrível, não...?
E no fim...
"(...) Um ar de família em todos delatando, iniludível, a fusão perfeita de três raças (...)"
"(...) e aqui, e ali, um perfil corretíssimo recordando o elemento superior da mestiçagem (...)"!
Parece inverossímil, ou que se trata de autores distintos, um adversário da mestiçagem, e o outro a favor...
Independente dos erros e acertos do gênio em atuação, a linguagem de Euclides em Os Sertões, como já se disse mais acima, é um capítulo a parte dentro da própria história da literatura lusobrasileira, o suficiente para alçá-lo à condição merecida de Mestre, que é o objetivo deste blog. E para encerrar, uma pequena quadrinha do fim do livro, o que dará ao leitor atento, ao mesmo tempo, a noção clara do que foi a tragédia de Canudos e o traço marcante do grande escritor que foi Euclides da Cunha...
"(...) Uma megera assustadora, bruxa rebarbativa e magra - a velha mais hedionda talvez destes sertões - a única que alevantava a cabeça espalhando sobre os espectadores, como faúlhas, olhares ameaçadores; e nervosa e agitante, ágil apesar da idade, tendo sobre as espáduas de todo despidas, emaranhadas, os cabelos brancos e cheios de terra, - rompia, em andar sacudido, pelos grupos miserandos, atraindo a atenção geral. Tinha nos braços finos uma menina, neta, bisneta, tataraneta talvez. E essa criança horrorizava. A sua face esquerda fora arrancada, havia tempos, por um estilhaço de granada: de sorte que os ossos dos maxilares se destacavam alvíssimos, entre os bordos vermelhos da ferida já cicatrizada... A face direita sorria. E era apavorante aquele riso incompleto e dolorosíssimo aformoseando uma face e extinguindo-se repentinamente na outra, no vácuo de um gilvaz."

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